
Vivemos num tempo em que a certeza virou mercadoria e o pensamento crítico, quase uma arte esquecida. As redes sociais estão repletas de gurus improvisados, defensores inflamados de ideias que mal conhecem, e seguidores devotos de doutrinas que nunca ousaram questionar. No meio disso, paira um paradoxo antigo e, ao mesmo tempo, mais atual do que nunca: os mais inteligentes são cheios de dúvidas, e os mais ignorantes, repletos de certezas.
Mas por que isso acontece? E mais: qual o lugar da verdade nesse mundo tão ruidoso, onde todos gritam, mas poucos escutam?
O problema parece residir justamente na forma como tratamos o conhecimento. Aquele que pensa com profundidade sabe que todo saber é limitado, que cada resposta carrega em si novas perguntas. Já o ignorante se apega à primeira resposta que encontra, e a defende como se fosse uma verdade eterna. Talvez porque o pensamento seja, em sua essência, um ato de coragem.
Pensar é confrontar-se com o abismo. E o abismo não oferece conforto.
Uma das constatações mais inquietantes que carrego é esta: a maioria das pessoas que acreditam cegamente em uma doutrina, seja ela religiosa ou filosófica, raramente a conhecem com profundidade. Se a conhecessem, se se permitissem o incômodo da análise, da leitura crítica, do confronto com as contradições internas e externas dessas doutrinas, talvez não acreditassem com tanta facilidade.
É mais fácil aceitar do que questionar. Mais leve. Mais cômodo. Mais “seguro”. Afinal, duvidar é carregar o peso da incerteza. Acreditar é como vestir um colete salva-vidas, mesmo que se esteja apenas em uma piscina rasa.
A fé cega, nesse sentido, é um paradoxo cruel. De um lado, oferece o alívio doce da proteção ilusória; do outro, impõe grilhões invisíveis que aprisionam a alma num trilho não questionado. Quem nela se ancora pode até sentir segurança, mas caminha sem escolha, levado pela corrente da maioria — como gado manso que ignora o abatedouro.
Diante disso, talvez o caminho não seja abolir a fé, mas purificá-la com a dúvida. Equilibrar a busca espiritual com o pensamento crítico. É possível acreditar sem ser cego. É possível pensar sem se tornar cínico.
Esse caminho do meio — que tantas tradições espirituais verdadeiras pregam, mas poucas realmente praticam — é o mais difícil. Exige entrega sem servilismo. Exige análise sem arrogância. Exige, sobretudo, uma escuta sincera do silêncio interior.
Falo com alguma propriedade, porque vivi isso. Em uma prática budista de meditação, fui convidado a questionar tudo dentro da minha própria mente, sem verbalização, sem apego aos pensamentos, e evitando que o ego interferisse. Uma jornada silenciosa, introspectiva, e incrivelmente transformadora.
Aos poucos, a mente vai cedendo. Os ruídos se calam. As certezas se desfazem. E no lugar delas, emerge algo mais profundo, mais vasto, mais verdadeiro.
A verdade, percebi, não está escrita. Ela não cabe em livros, em dogmas, nem mesmo em palavras. Ela está no silêncio. No vazio fecundo que surge quando o ego se cala e a consciência escuta.
Uma das maiores armadilhas das doutrinas dogmáticas é essa: convencer o indivíduo de que duvidar é pecado. Mas eu te digo: se a verdade é mesmo verdade, ela não teme ser questionada. Pelo contrário, ela se fortalece no questionamento. Cresce na investigação. Brilha no atrito com a razão.
A doutrina cristã, por exemplo, foi uma das que mais me exigiu abandonar meu pensamento crítico. Seguir uma “receita de bolo” com promessas de salvação eterna, enquanto se pedia que eu ignorasse as contradições internas do texto sagrado, a história de suas instituições e as dúvidas que nasciam naturalmente em mim.
Muitos creem por medo do inferno, não por amor à verdade. Agarram-se à letra morta porque temem o silêncio onde Deus talvez não responda.
Mas foi no silêncio que eu encontrei minha paz. No silêncio da meditação. No silêncio do pensamento que não precisa se transformar em fala. No silêncio onde a mente não quer dominar, mas apenas observar.
Ver o mundo com outros olhos — não os físicos, mas os da consciência — é perceber que tudo está interligado, e que nada é permanente. Que cada coisa, por mais comum que pareça, carrega em si uma centelha de mistério.
A cidade se torna um organismo vivo. As pessoas, reflexos do mesmo drama essencial. O tempo, um rio que não se pode deter, apenas acompanhar.
Hoje, vivo com mais dúvidas do que antes. Mas são dúvidas que libertam, e não que aprisionam. Elas me impedem de julgar com rapidez, de aderir com fanatismo, de seguir com cegueira.
Aprendi que a liberdade não está em saber tudo, mas em aceitar que nunca saberei o suficiente. E, mesmo assim, continuar buscando.
A verdade, se existe, não precisa ser provada. Apenas percebida.
E talvez, um dia, quando eu estiver em absoluto silêncio, ela sussurre de volta.
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